XI



A vida sorri-te, Maria?
Não. A vida não me sorri.
A vida é madrasta comigo.
Sinto que o que procuro não encontro,
o que desejo não alcanço,
o que sonho não se realiza,
os que me amam eu não os amo,
porque não cheguei a conhecer o amor.


Sempre quis o bem acima do mal.
Sou perfeccionista de extremos,
gosto muito e não gosto nada.
Imagino alegria,
boas sensações,
bons momentos,
sorrisos, viagens no tempo,
mas não me vejo nelas,
não me vejo neste mundo e nada sinto.
Parte de mim não encaixa na outra.
Não encontro sintonia.
A alma e o corpo não se chegam a tocar.


Vejo-me agora sentada frente ao piano.
Ele reluz tão intensamente
como que se pedisse baixinho «dá-me vida».
Toco-lhe a medo.
O som agudo assusta-me.
Toco-lhe novamente, e novamente e novamente.
As notas disparam como flechas desconcertadas e sem alvo.
Toco furiosamente,
cada vez mais rápido,
com cada vez mais força.
Tento arrancar das teclas perfeitas a perfeição para a minha vida.
Suspendo. O silêncio é cruel.
As lágrimas queimam o rosto, petrificam a alma.
Vejo-me na infância. Sou eu.
As imagens vão-se sucedendo umas às outras e sempre mais.
Continuo a ser eu.


Detenho-me a olhar as mãos que tremem.
Secam-se as lágrimas e as escuridão volta ao meu redor.
Nada, absolutamente nada.
Os cortinados esvoaçam nas janelas abertas de para a par.
Chove lá fora.
Chove na minha pobre alma.
Volto a ver o piano e as minhas mãos.
Toco-lhe de ponta a ponta.
Ele chora. A minha alma chora.

O que levar desta passagem pelo tempo?
Ontem nasceste, hoje estás aqui, amanhã já te esqueceram.

Desejava adormecer em sono profundo,
Acordar no meio de uma paleta de cores,
Sem o branco, sem o preto, sem buracos.
Uma paleta perfeita.

Vejo-me ao espelho,
Corpo débil, olhos fundos, mãos brancas.
Fecho os olhos e tudo volta até mim.
De novo a escuridão,
o HOJE já passou.


1 comentário:

ContorNUS disse...

Amei

tocantes as pelavras que se albergaram no pensamento repleto de sentir