Morri também I


Capítulo I

I.


Chovia. Aproximei-me do café, junto ao mar e esperei.
Veio o rapaz. Vestia calças pretas e camisa branca. A bandeja na mão esquerda, um sorriso emprestado. Não me esforcei para lho devolver.
- Um café. Pedi. Num gesto demorado, abri o pacote do açúcar e bebi o café. Era amargo.
Do lado de fora havia apenas areia e depois o mar.
Atentei na chuva a escorregar pela vidraça e lembrei as lágrimas que me lavaram o rosto naquele dia. Tocava Madredeus, muito baixinho. Tive vontade de pedir ao rapaz que aumentasse o volume. – Esta música deve ser escutada um pouco mais alto. O rapaz sorriu de novo, desta vez naturalmente. Comecei a acompanhar o ritmo e adivinhar-lhe as palavras. Era linda, lindissíma.



«Vem
Além de toda a solidão
Perdi a luz do teu viver
Perdi o horizonte
Está bem
Prossegue lá até quereres
Mas vem depois iluminar
Um coração que sofre
Pertenço-te
Até ao fim do mar
Sou como tu
Da mesma luz
Do mesmo amar
Por isso vem
Porque me quero
Consolar
Se não está bem
Deixa-te andar a navegar.»


Dentro de mim havia a mesma música.
As ondas batiam nas rochas, de forma violenta. A cada batida que se ouvia, a minha alma era fustigada. Errei. Fosse talvez esse o meu castigo. Merecia-o.
- Outro café, por favor. O rapaz acenou com a cabeça sem se pronunciar. Consegui escutar-lhe o pensamento, “Outro café? Com certeza.”
Trouxe o café na bandeja e voltou a baixar o som. Era moreno, dedos compridos, unhas muito pequenas, cabelo escuro e curto.
Ao meu redor. Seis mesas, duas vazias. Um casal a falar muito baixinho, de olhos brilhantes. Um homem com cabelo branco, lendo atentamente o jornal. Uma menina com a mãe, que esperava a chuva passar. E aqui, eu.
Estavam todos à espera. Esperei também.
Peguei no meu moleskine e na pena. Abri-o com cuidado, como se se tratasse de um livro antigo, valioso. Passei os dedos no papel áspero. Era o momento certo para escrever.
Parou de chover. Apenas vento. As gaivotas deixavam as suas pisadas marcadas na areia molhada enquanto os restos de eram devorados. Parei para lhes seguir os movimentos. O desespero causado pela fome daqueles bichos, assemelhava-se ao meu. Comecei a bater com o pé esquerdo. Era uma tique. A perna foi acompanhando, sem quebrar o ritmo.
A música, o cheiro a café, o vento, os bichos, o riso da criança, as mãos do rapaz, entraram na minha cabeça e começaram a girar.
Dei por mim num momento de loucura. As lágrimas molhavam-me o rosto, queimavam. Caíram sobre a tinta da caneta e mancharam o poema. «
Ainda te encontro aqui, / ao meu lado. Sinto teu odor, / tua respiração ofegante./ Brilham teus olhos, são pérolas acesas/ olharem os meus/ apagados, distantes.»
Não consegui terminar o poema. As lágrimas tinham-se agora transformado em choro.
O rapaz veio ao meu encontro. Não o ouvi. Estava já longe, para lá do mar, austero, imponente, ameaçador. Agora eras tu quem eu via. Fechei os olhos. Não, continuavas ali, a olhar-me. Não te mexeste, eras mesmo tu. Meti as mãos na cabeça, tapei os olhos, chorei.
Tocaram-me. Era o rapaz - Sente-se bem?
Perfeitamente, obrigada. Olhou-me nos olhos e deixou-me. Não gostei. Não gosto que me ollhem assim. Era estranho o rapaz.
Paguei a conta a saí.


(Continua)

Sem comentários: