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Carta para ti ( 3 )


Hoje voltaram a fazer perguntas sobre ti, sobre mim, sobre nós. Vieram também uns senhores de fora. Falaram de ti.
Disseram que teriam aberto um processo para investigar as causas da tua morte. – Parvos! Completamente absurdo. Disse-lhes que não estavas morto. Insistiram e eu insisti também. Ainda ontem te vi e falámos tanto um com o outro.

Acho que eles não acreditaram em mim, por isso me julgam louca. Só o tipo da bata branca e olhos azuis pareceu acreditar. Disse-lhes qualquer coisa muito baixinho e ordenou que nos deixassem a sós. Depois olhou-me demoradamente e sentou-se a meu lado.

-
Vamos fazer um jogo. Eu pergunto, a Maria responde. Regra número um: só pode dizer a verdade; regra número dois: não pode abrir os olhos; regra número três: não voltaremos a fazer este jogo. Aceita?
Aceitei.


-
Então comece por se deitar e fechar os olhos.
Foi o que fiz.
-
Agora leve-me até sua casa. Diga-me, o que vê?
- Vejo o meu quarto. Vou até à janela, abro-a e já sinto a maresia. Ah, o mar! Que saudades do mar...
- Porque chora, Maria?
- O meu marido...
- O que aconteceu ao seu marido?
- Não, é mentira!
- Maria, o que aconteceu ao seu marido?
- Ele está aqui, eu consigo senti-lo. Consigo escutar-lhe a respiração. Ele está aqui. Está sim...
- Maria, que aconteceu ao seu marido?
- Não. Basta!

Abri os olhos, o jogo terminou. Ele pegou nas minhas mãos frias e disse: Amanhã continuamos o jogo, está bem? – depois saiu.
Adormeci e de nada mais me lembro.

Veio-me à memória, o momento em que lias para mim. Este pequeno momento é para ti.

Sempre tua.




Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.

No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.


- Cecília Meireles, cântico IV

1 comentário:

Anónimo disse...
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